domingo, 10 de agosto de 2014

(escrito pela minha irmã, Rita Zapella.




Meu pai:
Meu pai não foi o meu melhor amigo, alias ele não era meu amigo. Ele era daquele tempo que ser pai era ser pai. O pai dele ensinou assim. E o pai do pai dele também.
Meu pai provavelmente não estava presente quando dei meu primeiro passo, nem quando falei a primeira palavra, nem quando saí do peniquinho
Meu pai nunca estava lá quando eu caia brincando. Nunca me deu a mão quando eu caia de bicicleta...por que eu nunca tive bicicleta e , alias, nunca aprendi a andar sobre uma.Não esteve presente no meu baile de oitava série, nem na formatura do colegial.
Meu pai foi de uma geração complicada, onde um homem , um marido “ de verdade” pensava que podia fazer com a esposa e mãe dos seus filhos coisas que não são muito legais. Não se importava em ficar em casa no final dos dias , ele ficava no bar, bebendo com os amigos. E só ia para casa no final da noite, para jantar e dormir. E não passava na minha cama para dar boa noite e nem tampouco para dar um “nó” no meu lençol para dizer que havia estado lá enquanto eu dormia.
E eu vi tudo isso. Meu pai receberia da sociedade de hoje , com seus conceitos atuais um “rótulo” que talvez estampasse uma lista vermelha nele.
Me lembro que , numa época em que dormia no mesmo quarto que ele e que minha mãe, em um misto de sono e despertar , sabia que ele estava lá pelo cheiro do “Avanço” , desodorante que ele usou praticamente a vida toda... não tinha Natura e Boticário naquela época... e acho que se tivesse ele se manteria com o “Avanço” mesmo.
Uma vez por ano ele “liberava” dinheiro para minha mãe para fazer compras de roupas para ele , e ela ia no “Mappin” e comprava calças e camisas e gravatas para ele , pq ele trabalhava todo dia de gravata.
Meu pai era São Paulino , e odiava corintianos......
Meu pai estudou até a quarta série , e tinha a letra mais linda que já vi até hoje, e fazia contas com uma rapidez surpreendente , e se bobeasse era mais rápido que a tecnologia daquele tempo. Meu pai só lia a “Gazeta Esportiva”, ouvia a CBN , adora o “Heródoto Barbeiro” e não dava nenhuma bola para o Cid Moreira.
Meu pai nunca , nunca me bateu. Ou melhor , uma só vez, um tapa , quando eu já contava com mais de dezoito anos. Um único tapa.
Meu pai , deixava todo sábado de manhã, dinheiro sobre a mesa do café para minha mãe fazer a feira. Mesa de café alias onde ele nunca se sentou , tomava sua xícara de café preto e forte e seu “guaraná” ( que minha mãe deixava pronto todo dia) em pé...e as vezes acrescentava um ovo quente no pacote , que ele tomava de um gole só....
Meu pai acordava de noite para chupar laranjas, pelo menos quatro, todos as madrugadas durante anos e anos a fio, enquanto ele podia se alimentar naturalmente. Quando eu era pequena , as vezes acordava, e ficava sentada com ele. Ele descascava uma laranja para mim, e ficávamos ali,chupando laranja. Faço isso até hoje quando tem laranja aqui em casa.
Meu pai fumou desde quando era criança. Fumava Hollywood . pelo menos um maço por dia.
Ele fazia exatamente o mesmo trajeto todos os dias para trabalhar, e quando se mudou para Itu, e tinha que ir em algum lugar que não fosse a casa da minha irmã e a dele , sempre ia no caminho que conhecia e de lá partia para o destino... mesmo que isso atrasasse em vários minutos sua chegada.
Meu pai perdeu tudo no plano Collor, todo o muito pouco que tinha. Meus amigos , em sua grande maioria, tinham casa própria, nós sempre moramos em casa de aluguel, aliás aluguel que minha mãe sempre ia pagar exatamente no dia do vencimento em dinheiro vivo. Meu pai só usava dinheiro vivo.Nunca teve cartão de crédito. Mas sempre teve o nome limpo.
Meu pai , no fim do dia , em um ato de rebeldia , tirava a camisa social de dentro da calça e dava um nozinho como se quem quer dizer que aquele nó – que contradição – o libertava das responsabilidades ( que ele assumia como ninguém) durante o dia. Fez isso até o fim da vida, só que no final já fazia o nozinho logo de manha...
Meu pai teve um câncer agressivo, em função da vida toda de fumante, foi diagnosticado com prognóstico de dois anos, tirou metade da língua, tirou a epiglote, e um músculo que não sei direito qual que deixava sua cabeça meio tortinha, meio fora do prumo e precisava de um paninho – que carregava muito branquinho e limpo nos ombros para absorver a saliva que já não conseguia engolir.
Durante pelo menos uns sete anos – sim ele viveu mais que dois anos – ele só se alimentava de líquidos, uma composição de gosto nada agradável que minha mãe fazia , mas que o manteve vivo e forte até o dia que ele levantou e disse para ela que tinha sonhado que comia arroz e repolho refogado. E comeu. Sem nunca ter feito nenhum dos exercícios de fono que deveria ter feito para voltar a engolir. Comeu pão com mortadela também, que ele adorava alias. Devagar e com muito cuidado para não engasgar, mastigando muito , com os dentes que raríssimas vezes tratou em dentista, quando tinha dores de dente ( meio frequentes) tomava Ponstan e esperava a dor passar.
Meu pai tinha um sorriso torto e um olhar de sacana que nunca mais consegui identificar em ninguém. Ele pegava no rosto da gente com as duas mãos e, com uma delas, nos dava tapinhas, como para dizer o quanto gostava da gente.
Meu pai se transformou em ternura somente após o nascimento dos meus sobrinhos. Por quem ele era simplesmente apaixonado, e mesmo assim, sua ternura era contida como ele achava que os homens de sua geração deveria fazer. Mas ele foi, sem sombra de dúvida muito melhor vovô do que papai. Minha irmã nunca o chamou de “pai” sempre de “papai”. Aliás ela e meu irmão nunca fumaram na frente dele. Sempre o faziam “escondido” dele . Eu era cara de pau mesmo, fumava junto com ele enquanto ele não havia largado o vício.. e cruelmente depois , perto dele quando ele não mais podia fumar.
Não estava ao lado da sua cama quando ele morreu. Minha irmã estava. Por que eu , havia dado barraco no hospital com um médico filho da puta , que olhou para mim e disse que “ele não tinha culpa se meu pai havia fumado quarenta anos” e que olhou meu pai com um olhar que médico nenhum deveria ter e falou para a enfermeira “ controla, manda para casa é teminal” .. bem ali ao lado do meu pai, que como um pardalzinho não tinha ar para poder nem ao menos se manifestar, mas tinha ouvidos bons o suficiente para ouvir. Eu tinha , exatamente naquele dia brigado com minha irmã, e estava sozinha, deitada quando recebi a notícia . e não soube nem mesmo oq falar. Justo eu.
Meu pai foi isso aí e muitas outras coisas. Não foi um modelo de pai, quem dirá modelo de marido.
Mas não conheci nessa vida toda ninguém mais honesto que ele.
Todos os dias, por um motivo ou outro, minha mãe – que beija a foto dele todos os dias desde que ele se foi há longos 13 anos, me diz .. “ vc é igualzinha ao seu pai... “ , quando ela olha minha letra ela diz.... “ sua letra é igualzinha a do seu pai”. Quando tenho minhas explosões emocionais e grito feito uma louca , proferindo palavras impensadas ela não diz mas me olha pensando em tantas vezes que ele fazia a mesma coisa e .. exatamente cinco minutos depois já havia esquecido ...exatamente como eu. Sei exatamente oq ela pensa que toda vez que acendo um cigarro. Torcemos feito loucas quando o São Paulo joga e ficamos muito putas quando o Corinthians ganha. Principalmente quando joga com o São Paulo. Ainda tenho guardado na gaveta um dos paninhos brancos que ele usava. Tenho um pedaço de trapo de uma camiseta da Undenberg que ele usava , branca escrito o nome da bebida em verde.
É assim que meu pai era. E acreditem. Mesmo com todas essas coisas que não foram perfeitas , mas das quais nunca esqueço, e tantas outras coisas que não escrevi, todos os dias , e no Dia dos Pais muito mais , sinto a falta dele. Sinto falta de um colo que nunca recebi , mas que sei lá pq sempre soube que estava lá. É em dias como hoje que a saudade grita de uma forma que é difícil descrever. É em dias como hoje que sinto um orgulho do tamanho do mundo de ser chamada de Zapella. E de ser assim como sou. Irremediavelmente parecida com ele. É em dias como hoje que entendo que na verdade eu queria ele aqui do meu lado. Com meu amor egoísta. Eu queria ele aqui do meu lado. De qualquer forma. Só para saber que ele tava ali. Ao alcance das minhas mãos. E quem sabe, sentir o cheiro do “Avanço” que ele usava depois do banho.